As personagens das histórias infantis que você lê na sua biblioteca correspondem à diversidade étnica das crianças da sua comunidade? Confira o artigo do escritor Reni Adriano.
O que eles contam e o que nós contamos: a cor das letras contemporâneas
Reni Adriano
Graduado em Filosofia pela PUC/SP, é escritor e
consultor em leitura e literatura e em projetos de formação de leitores.
O poema é bastante conhecido. Além de ter sido escrito por um dos maiores nomes do modernismo brasileiro, já foi publicado em diversas antologias – inclusive infantis –, por ser daqueles textos que despertam simpatia imediata, uma vez que mobiliza algo da nossa ternura tipicamente brasileira.
Irene no Céu
Irene preta
Irene boa
Irene sempre de bom humor.
Imagino Irene entrando no céu:
– Licença, meu branco!
E São Pedro bonachão:
– Entra, Irene. Você não precisa pedir licença.
Não é que tenham acusado o autor, Manuel Bandeira, de racismo. Isso, não. Mas muitos surpreendem nas entrelinhas desse poema certa docilidade que os patrões geralmente exigem dos subordinados – uma manifestação tipicamente brasileira em que a opressão se traveste de afeto para mais dominar. A docilidade de Irene, negra, diante da condescendência do branco bonachão faria do texto de Bandeira algo mais do que um “poeminha fofo”. Mas, se uns veem fofura onde outros veem violência, o poema continua vivo, nos fazendo pensar. Nesse sentido, a releitura que o poeta Márcio Barbosa fez desses “versinhos do Manuel” é uma boa provocação.
O que não dizia o poeminha do Manuel:
Irene preta!
Boa Irene um amor
mas nem sempre Irene
está de bom humor
Se existisse mesmo o Céu
imagino Irene à porta:
– Pela entrada de serviço – diz S. Pedro
dedo em riste
– Pro inferno, seu racista – ela corta.
Irene não dá bandeira
ela não é de brincadeira
O racismo é algo estrutural: existe um comportamento racista naturalizado, entranhado nos gestos e falas cotidianos que reproduzimos independentemente de nosso posicionamento pessoal, porque irrefletido. É assim que ninguém está a salvo de agir de modo racista, ou mesmo de expressá-lo “sem querer”, como fica patente na comparação dos dois poemas acima.
E, por falar em comparação, reflita:
Quantos escritores negros e indígenas você conhece? Dos livros que você já leu, quantos indígenas e quantos negros eram protagonistas? As personagens das histórias infantis que você lê na sua biblioteca correspondem à diversidade étnica das crianças da sua comunidade? Se essas são perguntas incômodas, é sinal de que precisam ser ainda mais perguntadas, pois o incômodo maior seguramente está nas respostas.
Quem quer trabalhar com a palavra, em sua dimensão elaborada, vai, a qualquer momento – e por muitas vezes – ter que lidar com polêmicas. Em muitos casos, isso é até uma obrigação, dado que problematizar é próprio da arte e é a razão de ser do pensamento. E se enfrentar o racismo no Brasil é, além de uma obrigação, um gesto de coragem, destemido é o projeto da Biblioteca Comunitária de Magé, na Baixada Fluminense. Intitulado “Os contos que eles contam e os que nós contamos: rompendo com histórias únicas”, o projeto durou nove meses, ao longo de 2015, e foi dividido em 22 etapas.
Em março, catalogaram todas as obras literárias da biblioteca e, conforme encontravam os livros com o tema do projeto, criavam um catálogo paralelo de literatura étnica (indígena e afro-brasileira), totalizando 39 livros do gênero. Em seguida, apresentaram os livros aos estudantes do Fundamental I, de modo que eles pudessem identificar o que as obras tinham em comum, e isso desencadeou uma acalorada discussão sobre a importância das culturas indígenas e negras na formação da identidade brasileira. As crianças descobriram que também existem princesas negras e que, na literatura como na vida, negros e índios existem!
Na Educação Infantil, crianças negras de 4 a 6 anos puderam se ver pela primeira vez em um personagem de sua cor, através dos livros expostos no varal literário do sarau promovido no mês de abril. Aliando ecologia, antropologia e literatura, foi resgatada a lenda da índia tupinambá Mirindiba que, conta-se, protege o povo de Magé lá do alto do Morro do Bonfim, depois de ter sido transformada numa árvore de mesmo nome. As crianças desconheciam a belíssima história da índia, do mesmo modo que nem desconfiavam que Maria Conga foi uma heroína quilombola que lutou pela libertação dos negros e oprimidos do município de mais de 450 anos que já foi um grande celeiro agrícola que abastecia a então capital brasileira, Rio de Janeiro, por meio de trabalho escravo. No lastro desse resgate, histórias de idosos, avós das crianças e moradores da região também foram resgatadas em atividades específicas a esse fim.
O projeto da Biblioteca Comunitária de Magé se desenvolveu totalmente articulado com o projeto pedagógico da Escola Municipal Dinorah dos Santos Bastos, em que está inserida. Sendo assim, às atividades de leitura somaram-se muitas vezes teatro, produção de textos, musicalização, artes plásticas, corporeidades, iconografias e outras linguagens que fogem ao alcance do nosso relato, cujo foco é especificamente a leitura. Além disso, o trabalho está plenamente de acordo com a lei federal 11.645/08, que torna obrigatório o ensino da história e das culturas indígena e afro-brasileiras em todas as escolas do país. Enquanto a maioria esmagadora das escolas brasileiras ignora ou desconhece a lei, a Biblioteca Comunitária de Magé ofereceu leitura de literatura de qualidade contemplando esses temas o ano inteiro, mês a mês.
De agosto a dezembro, os livros do acervo étnico também passaram a ser emprestados para as crianças levarem para casa e lerem com os pais e familiares, que puderam descobrir e fruir de histórias de outras cores, sonoridades e matizes.
O projeto da Biblioteca Comunitária de Magé é extremamente bem escrito e profundamente afinado com questões do nosso tempo, trazendo para o dia a dia da comunidade temas que raramente saem do âmbito dos estudos teóricos das universidades. “O desafio enfrentado e que temos superado a cada dia é a sensibilização para a leitura como prática da liberdade. Sobretudo quando se trata de uma realidade como a nossa – estamos na zona rural –, que por vezes é marginalizada por estar longe do grande centro”, garantem as responsáveis pelo planejamento – a diretora da escola, Veluma Silva, a professora implementadora de leitura Daise Pereira e a professora dinamizadora de leitura Pâmela Nogueira.
As atividades desenvolvidas ao longo do ano letivo contemplaram, além dos alunos da escola, outras pessoas da comunidade, mas sobretudo familiares dos estudantes.
Um incômodo perfil da literatura brasileira contemporânea
Após 15 anos de pesquisa sobre o perfil da literatura brasileira contemporânea, a professora da Universidade de Brasília (UnB), Regina Dalcastagnè, é categórica: a desvalorização histórica da condição do negro, e que conforma a própria cultura brasileira, reflete direta e indiretamente na nossa literatura. A professora se debruçou sobre os romances brasileiros publicados entre 1990 e 2004 pelas maiores editoras do país – Companhia das Letras, Rocco e Record –, com o intuito de mapear o perfil médio dos escritores e das personagens representadas nos livros. O resultado, segundo ela, é que “séculos de racismo estrutural afastam dos espaços de poder e de produção de discurso a população negra”.
Letras e números
Dos 1.245 personagens catalogados em 258 obras, somente 2,7% são mulheres negras. Nessas poucas aparições, são retratadas como empregadas domésticas ou prostitutas, em 70% dos casos. Nas demais aparições, figuram como donas de casa, escravas e delinquentes. A análise ainda aponta que em apenas três dessas obras uma mulher negra aparece como protagonista – e em apenas um caso é ela a narradora.
A regra da exclusão vale também para personagens negros masculinos, majoritariamente representados como marginais, enquanto a maioria branca desempenha papéis de artistas ou jornalistas.
O perfil médio dos personagens dos romances pesquisados seria: homens brancos (79,8%), provenientes da classe média (56,6%) e heterossexuais (81%). Em 56% dos romances não existe sequer um personagem não branco.
Quem está falando
72,7% dos romances analisados foram escritos por homens. Destes, 93,9% são brancos.
A pesquisa em detalhes
A pesquisa resultou no livro Literatura Brasileira Contemporânea: um território contestado, lançado em 2012 pela Editora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ – em parceria com a Editora Horizonte.
Acesse o infográfico do Portal Ponto Eletrônico com as principais informações da pesquisa: https://bit.ly/1OjGhpK
(Regina Dalcastagnè informou, quando da divulgação do estudo, que uma nova equipe já havia sido montada para prosseguir com a pesquisa, junto às grandes editoras, com um recorte das publicações de romances brasileiros de 2005 a 2014).