Christine Castilho Fontelles nos convida a uma jornada pelas histórias que inquietam, encantam e povoam mentes e corações da espécie humana desde sempre. O artigo foi publicado originalmente no site Rede Peteca – Chega de Trabalho Infantil.
Quando temos “aquela” sede, nada melhor do que ir direito à fonte fresquinha, colher a água nas mãos em concha, molhar o rosto, a nuca, talvez os pés, o peito… Reanima, revigora, refresca, reconecta. Quem nunca beber água dessa fonte e servir-se apenas de filtro, garrafas, jarras, etc., não saberá jamais o que é essa sensação. E acreditará que tudo sabe sobre saciar a sede.
Pois o mesmo acontece com os contos de fadas, aqueles onde crianças são abandonadas na floresta, reinos inteiros são adormecidos, jovens mulheres submetidas a injustiças causadas por quem lhes é tão próximo. Parece familiar? Resgatados da tradição oral há mais de trezentos anos por escritores como Charles Perrault e Irmãos Grimm (Jacob e Wilhelm) e escritos por Hans Christian Andersen, os chamados contos de fadas transportam temas que inquietam, aquietam, aterrorizam, deslumbram, assombram, encantam, povoam – e seguem povoando – mentes e corações da espécie humana desde sempre.
Jornada interior
Os contos de fada falam de inveja, traição, ciúmes, morte, mesquinharia, abandono, paixão, incesto, honra… Enfim, propõem uma jornada interior para muito, mas muito além da superfície pré-cozida e temperada das adaptações de caráter comercial, desmembradas em bonecos, gomas de mascar, lençóis, copos, edredons e uma infinidade de traquitanas que servem apenas como entretenimento fácil e esquecível e, também e inclusive, repeteco de estereótipos de beleza e comportamento.
Os contos de fada provocam uma jornada interior a oceanos de sentimentos não sabidos, ou vividos, ou desconhecidos, ou ainda não nominados. Qualquer que seja a categoria a qual pertençam, oportunizam o primeiro contato e diálogo interno com as aflições e sentimentos humanos e promovem aquele conforto advindo da tomada de consciência de que não estamos sós. De que alguém antes, alguém também, ou alguém que viverá para além de nós vive, sente, teme, sonha se não o mesmo, algo muito semelhante a nós.
“Os contos de fada têm um léxico – um vasto grupo de ideias expressas em palavras e imagens que simbolizam pensamentos universais. No léxico da psicologia, por exemplo, a princesa de cabelos dourados não representa uma bela menina que vai crescer e se tornar uma bela loura do tipo Miss América e se casar com o capitão do time de futebol americano da escola local. A princesa de cabelos louros no conto de fadas representa certa beleza de alma e espírito que, metaforicamente, é de ouro e não pode ser adulterada. A princesa de cabelos louros não é uma pessoa do cotidiano, antes representa a essência da alma que tudo eleva através de sua beleza e sua honra”, esclarece a Dra. Clarissa Pinkola Estés (“Contos dos Irmãos Grimm”, pág. 23, Editora Rocco).
Analista junguiana, doutora em estudos multiculturais e psicologia clínica, a autora tornou-se célebre devido à obra “Mulheres que correm com os lobos”, onde recorre a diversas histórias para falar sobre a essência feminina – mas esta é uma outra e longa história.
Nada de fadas madrinhas!
Na versão de 1812 de “Branca de Neve”, por exemplo, não é a madrasta, mas sim a mãe da menina de cabelo preto como a noite, pele branca como a neve e lábios vermelhos como o sangue que invejosa da beleza da filha, manda um caçador leva-la à floresta e matá-la! A Cinderela/“Gata borralheira” – cujo apelido tem a ver com o fato de dormir muito próxima ao fogão para se aquecer e, portanto, vive suja devido à borralha, cinzas – recolhe todos os “presentes” (vestido, sapatos e mesmo ajuda para concluir os trabalhos extras que impiedosamente a madrasta lhe impõe para impedir que vá ao baile real) de uma árvore que nasce a partir de um ramo que, a seu pedido, o pai lhe trouxe de uma viagem. Nada de fadas madrinhas, pois! Sim, ao final, ambas se casam com os tais príncipes que se apaixonam por elas, não sem antes terem se desvencilhado de suas agruras por outros meios.
Mas, de novo, estamos aqui no plano do simbólico e é essa a leitura que precisa ser feita, para muito além da leitura de senso comum de que “tiraram a sorte grande” unindo-se a homens ricos que lhes proverão com castelos e mimos reais para o pra sempre em suas vidas. Aqui, como em todos os contos, o que está em cena é a capacidade e a possibilidade de superação, retomada, reencontro: o era uma vez, e sempre será, para ter esperança.
Histórias plenas de simbolismos
Nas propostas de leitura literária deve caber diversidade, onde fantasia e história caminham de mãos dadas; histórias de gente de carne e osso e histórias plenas de simbolismos sobre heróis e heroínas que sonhamos ser, sobre os monstros que precisamos vencer e aqueles que habitam em nós – afinal, como diz um provérbio de nativos americanos: “dentro de mim há dois lobos: um deles é cruel e mau; o outro é muito bom. Os dois estão sempre brigando. O que ganha a briga é aquele que eu alimento mais frequentemente”.
Em tempos onde há muita informação desencontrada circulando apressada, sobretudo nas redes sociais, é muito importante atenção redobrada para não julgar e banir leituras que são fundamentais e alimentadoras da alma humana e que contribuem, há muito e muito, para a compreensão da sofisticada, tensa, maravilhosa e turbulenta aventura humana na Terra.