• Categoria do post:Artigos

Para celebrar o Dia Mundial do Livro, Christine Castilho Fontelles propõe uma reflexão. Levar a ler e formar bons leitores é obra que só pode ser bem empreendida por leitores experientes: não é possível dar aquilo que não se tem. Adultos, pais, educadores: ler é preciso! Confira o artigo publicado originalmente na Rede Peteca – Chega de Trabalho Infantil.


O livro continua sendo, sim, uma tecnologia de futuro!

Sim, é um baita desafio formar bons leitores nestes dias de games e afins à mão cheia, para todos os gostos e bolsos. A atenção é dividida constantemente com qualquer distração, acessada com um simples touch. Basta o toque de um único dedo e um universo de entretenimento gratuito está à disposição de qualquer internauta. E não é só: muitos, se não todos, têm suas aventuras narradas em… livros! Impressos ou digitais. Então, ao que parece, ao contrário do que muitos preconizavam e preconizam, o livro continua sendo, sim, uma tecnologia de futuro!

Nos dias em que vivemos, a alfabetização publicitária muitas vezes precede ou é vizinha da alfabetização em si, da entrada no mundo da cultura escrita. Guiados por palavras e textos funcionários, pobres e ricos – muito mais os pobres do que os ricos –, ficam órfãos de experiências profundas e significativas.

Para ampliar o pequeno panorama em que vivemos e nos projetar, seja para a intensidade dos ambientes e das relações que estão no chão em que a gente pisa, seja para alargar horizontes para muito além de nós e promover abertura para abraçar a diversidade e causas de valores humanitários, é preciso, como diz o Professor Luiz Percival Leme Britto, “ler para além do óbvio”.

Então, vejamos, um livro de um youtuber sobre uma aventura de videogame é apenas e tão somente uma outra forma – escrita – de enveredar pelo mesmo universo: o jogo, que pode ter seu mérito até como recurso educativo para, por exemplo, aprender a planejar.

Mas é isto o que é, um jogo inserido em contexto já sabido; nenhuma trama, tensão ou personagens a desvendar, criar, imaginar, reconhecer, animar. Nada que arrepie a pele, provoque um choque, assombre, encante, seja desconhecido. Nenhum personagem com quem se solidarizar, estranhar, amar, odiar, temer para além do cenário já sabido.

Haarausfall bei Männern | Toupets, Perücken und Haarteile für Männer
Crédito: Elza Fiúza/Agência Brasil

Nada que faça mover de forma diferente um único músculo de um neurônio, se ele tivesse um. É estrada já percorrida, já sabida. Mais do mesmo! Ah! E não se trata aqui de censurar, negar, impedir, bloquear, impossibilitar o acesso a estes livros – nem queimar em praça pública, obviamente –, mas saber e estar atento para empreender estratégias que promovam às crianças, jovens e adultos uma trajetória leitora com leituras formativas: “leituras para além do óbvio”.

 

São livros que são pedidos e vendidos como água. Mas não são boa literatura. Da literatura, colhemos o espanto e nos alimentamos de revelação. Em “Lugar Nenhum”, de Neil Gaiman, há um vilão tão vilão, tão cruel, tão insensível, que entre seus prazeres mais requintados de sadismo – que compreende uma longuíssima lista de horrores levados a cabo ao longo de séculos – está saciar sua fome de beleza do mundo comendo, literalmente, uma estatueta de porcelana chinesa raríssima, criada há séculos por um renomado e incomparável artesão.

Não basta ao Sr. Croup realizar as maldades sabidas ou surpreendentes aos seres humanos que, caídos em desgraça segundo algum bom pagador por vinganças, definham em suas mãos; ele se alimenta do que pode trazer beleza e humanidade ao mundo!

É longa e diversificada a prateleira do “mais do mesmo”. Adaptações ruins de clássicos da literatura, dos contos hindus e da mitologia grega aos contemporâneos, tem de tudo um muito. É preciso um bom trabalho de arqueologia para identificar e propor leituras de referência.

“Formar leitores é muito mais do que transmitir uma técnica: é algo que tem a ver com o princípio de prazer, com as liberdades da imaginação, com a magia de ver convertidos em relatos bem narrados e em reflexões nítidas muitas coisas que vagamente adivinhávamos ou intuíamos, com a alegria de sentir que ingressam em nossa vida personagens incomparáveis, histórias memoráveis e mundos surpreendentes”, escreve Willian Ospina, jornalista e escritor colombiano.

Bom, assim como não é possível guiar alguém por trilhas que são pelo guia desconhecidas, levar a ler e formar bons leitores é obra que só pode ser bem empreendida por leitores experientes: não é possível dar aquilo que não se tem. Adultos, pais, educadores: ler é preciso!

*Christine Castilho Fontelles é cientista social formada pela PUC/SP com MBA em marketing pela FIA/FEA/USP. É conselheira do Movimento por um Brasil Literário e da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ), além de fundadora da Centhral do Brasil – consultoria de projetos de educação para a leitura e escrita. Coordena também a campanha Eu Quero Minha Biblioteca.